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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

RESGATES

Resgates

Edson Vidigal

Muitos ficaram com as boas lembranças que o poeta, em nome de todos
nós, resumiu em saudades – ah que saudades que eu tenho da aurora da
minha vida...

Outros só souberam da infância como um tempo que passou quase correndo
sem lhes dizer pouco ou quase nada do que lhes poderia ensinar no
aprendizado de viver.

Muitos receberam cedo as cobranças, sofreram as urgências das
necessidades que suprimem as esperas e tiveram que tanger seus sonhos
mais sonhados para os desvãos da memória para nunca serem esquecidos e
no tempo certo, amadurecidos, serem despertados.

Antônio Carlos, o futuro maestro Tom Jobim, ficou órfão cedo e sua
referência paterna foi o padrasto, que lhe deu um piano, passou-lhe o
gosto pela música. Até firmar-se no mundo como grande compositor,
estudou muito, trabalhou muito e passou por muitas necessidades.

Quando vejo o orgulho e a devoção com que Paulo, o seu filho músico,
cuida do legado paterno e o difunde, e o exibe ao mundo, tudo bem
guardado num acervo que só os grandes em vida podem fazer interessar,
me emociono com as certezas das suas inspirações.

Numa manhã, há alguns anos, eu estava sossegado numa loja de discos,
no aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, garimpando uma
prateleira de jazz, atrás de mais um Chet Becker, quando ouvi uma
mulher de voz assanhada perguntando se já haviam recebido o disco da
filha da Ellis.

Achei aquilo um tanto desrespeitoso com a moça. Ela tem talento
próprio e formação musical. Quando Ellis morreu de overdose, aos 36
anos de idade, seus três filhos eram ainda muito pequenos. Tiveram
infância normal, adolescência normal, hoje trabalham duro.

Assisti há pouco o DVD em que os filhos de Ellis, o João, o Pedro e a
Maria Rita, resgatam a sua história, a sua luta, a sua integridade
como artista sintonizada com o seu tempo, que abriu espaços a jovens
promissores como Gil, Edu, Chico, Belchior e Fagner.

No resgate da história de vida da mãe, os filhos de Ellis nos provam o
quanto o canto muitas vezes gritado daquela mulher pequenininha,
naquele contexto, valeu a pena para o Brasil.

Na mesa ao lado, na padaria, o moreno abancado com a mulher, dois
filhos, uma babá e a sogra, quase não consegue usufruir daquele
momento em família, tantas são as pessoas que passam e param e as que
se levantam para alcança-lo.

Mostra-se atencioso e bem-educado. Imagina só o que ele sofreu na
escola e o que amargou na vida por muitos anos pelo simples fato de
ser o filho que carrega o nome do pai, um homem adorado pelas
multidões e pouco depois atirado pelo preconceito e pela inveja,
unidas numa mesma maldade, para uma temporada no inferno de onde só
saiu quando a saúde já não lhe garantia mais a alegria para viver.

Wilson Simonal Filho, o Simoninha, é o moreno gente fina na mesa ao
lado, aqui na padaria da esquina. Ele e o seu irmão, o maestro e
arranjador Max de Castro, acabam de resgatar de forma emocionante e
corajosa a memória de seu pai, um dos maiores ídolos da canção popular
no Brasil.

O jovem senhor que me visita testemunhou, menino ainda, a intimidade
de um dos momentos mais trágicos da supressão das liberdades
democráticas no Brasil, a deposição pelos militares de um Presidente
da República, no caso o seu pai João Goulart. O pai, a mãe, a irmã e
ele, amargaram décadas no exílio.

O pai, aliás, nunca voltou. Melhor dizendo, voltou morto, num caixão
coberto com uma nova bandeira de uma nova luta, resumida na unica
aspiração nacional – Anistia.
João Vicente Goulart cuida agora de resgatar a memória do seu pai,
ontem tão ultrajada e hoje ignorada por muitos no Brasil. Ele é o
Presidente do Instituto João Goulart.

Aquele verso do Poema Enjoadinho, do Vinicius – Filhos? Melhor não
tê-los, não cabe nos exemplos de filhos como os de Tom Jobim, de Ellis
Regina, de Wilson Simonal e de João Goulart.

www.edsonvidigal.com

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